A viver em piloto automático: afinal, porque devo meditar?
Acordamos de manhã, e depois de saltarmos da cama, durante o duche revemos mentalmente a agenda para o dia, enquanto nos vestimos, e ao apertar o cinto das calças, criticamos as bolachas que comemos a mais no dia anterior antes de ir para a cama. Vamos ao frigorífico e tiramos algo que vai servir a função de pequeno-almoço, ao mesmo tempo que planeamos a ida ao supermercado ao fim da tarde, e o que podemos preparar para o jantar depois disso. Nem damos conta de que fruto é o sabor do iogurte que estamos a beber. No caminho para o trabalho, recordamos a conversa do dia anterior com o colega de trabalho, e imaginamos o discurso para persuadir o cliente com quem vamos reunir nessa manhã.
E assim continua o nosso dia: o corpo num sítio e a mente noutro... Aliás, dificilmente se encontram ao longo do dia - o corpo e a mente, com exceção daquele momento em que a pontada de dor nas costas chama a nossa atenção por um instante para o corpo, e surpreendemo-nos com aquela sensação física!
Mas só por um instante, pois logo a seguir a nossa mente perde-se em pensamentos sobre os motivos das ausências ao ginásio, e que são responsáveis pela dor que agora nos despertou, mas... só por um instante... pois a nossa mente logo segue com planos sobre como encaixar o ginásio na rotina acelerada, ou em críticas sobre a preguiça que nos impediu de ir da última vez, e daí até pode seguir eventualmente para outros julgamentos pouco simpáticos sobre nós, como “se os outros conseguem, porque é que eu não consigo?” ou ir mais longe perguntando “O que há de errado comigo?”. E aí vai ela: a mente a produzir pensamentos a toda a velocidade, passa cruzamentos e semáforos sem dar conta. Nada ou quase nada faz a mente parar quando está em piloto automático.
A verdade é esta: não importa onde estamos ou o que estamos a fazer, a nossa mente tem uma vida própria e corre de pensamento em pensamento: ora se prende com as recordações nostálgicas das últimas férias, ora em ruminações sobre uma resposta mal dada no dia anterior a alguém de quem gostamos. Outras vezes, lá vai ela fazer planos para o fim de semana, ou para as próximas férias, ou perde-se em preocupações sobre como vamos conseguir fazer todo aquele projeto até à data limite. Ou seja, a mente vai saltando do passado para o futuro, e do futuro para o passado, e só raramente, muito raramente (!) se confronta com o presente.
Quando a mente nos traz as memórias do último e divertidíssimo jantar de amigos, ou fantasia com o sol das próximas férias, isso traz para o nosso presente felicidade e entusiasmo, e não há grande problema nisso, bem pelo contrário... A questão é que quando a mente começa a vaguear ela tem vida própria, e sem darmos por isso, passamos dos planos para as próximas férias para o saldo da nossa conta bancária, e daí para a insatisfação com o nosso trabalho, e podemos até desembocar em algum sentimento de fracasso e frustração... E de repente, estamos a almoçar com os colegas de trabalho, num sítio simpático e cheio de luz, e apesar das piadas partilhadas, e da comida saborosa, damos por nós invadidos por um sentimento de fracasso e frustração que nem percebemos de onde vem... E, não raras vezes, podemos ficar tão incomodados com estas emoções que entramos noutra espiral de pensamentos sobre “porque é que me sinto assim?”, ”não tenho nenhum motivo para me sentir assim”, passando por “haverá alguma coisa de errado comigo?”.
Este modo de piloto automático pode ser crucial em muitas atividades do nosso dia, e permite-nos gerir em simultaneamente tarefas complexas como conduzir o carro numa grande cidade, enquanto ouvimos rádio, e acompanhamos a história que as crianças no banco de trás se perdem a contar.
Contudo, quando é que escolhemos entrar em piloto automático? Sabemos que o estamos a fazer? Escolhemos estar em piloto automático?
Ou, entramos muitas vezes neste modo automático sem ter escolhido? Na verdade, podemos passar grande parte das nossas vidas a quilómetros de distância, sem o sabermos...
E quando estamos em piloto automático, é também mais provável ativarmos padrões de pensamentos-emoções-comportamentos automáticos (que já fizeram parte da nossa história), sem termos grande consciência de que o estamos a fazer. Estes padrões habituais ou passados que podem ter sido funcionais noutro contexto, podem ser prejudiciais para o momento ou a situação em que estamos no presente. Até porque, no modo automático, o enviesamento da nossa mente para o que é negativo e potencialmente perigoso (mecanismo que foi muito útil à sobrevivência da nossa espécie), aumenta a probabilidade de ativarmos padrões de resposta com um conteúdo também depressivo ou ansioso.
Ou seja, o piloto automático leva a ativação de padrões de resposta no momento presente, que não sendo úteis, pioram o nosso humor e trazem-nos sintomas de stress físico ou emocional.
Por isso, a meditação mindfulness pode ser tão importante para nós: uma vez que não controlamos esta fábrica de pensamentos que é a nossa mente, só podemos controlar aquilo a que prestamos atenção. Isto é, podemos direcionar a atenção, como se um foco se tratasse para iluminar o que queremos ver com mais clareza. Podemos assim desviar o “foco” da atenção da espiral de pensamentos da nossa mente, direcionando-a para a o que está a nossa volta, para o que está a acontecer no momento presente, seja esse momento a conversa que estamos a ter com um velho amigo, seja o perfume das flores que vem do canteiro do jardim antes de entrar em casa, seja os sons das buzinas e dos carros no meio de um engarrafamento no caminho para casa.
Mas não é muito fácil, pois não? Costumamos dar conta que estamos dentro da nossa cabeça? E se dermos conta, conseguimos sair desta rede de pensamentos e automatismos?
A nosso favor temos o facto da atenção ser como um músculo, e os músculos treinam-se, exercitam-se, e é só isto que fazemos na meditação mindfulness: treinamos a atenção, treinamos o músculo da atenção.
Quanto mais desenvolvido estiver este músculo, mais fácil é percebermos se estamos em piloto automático, e nesse momento, nesse momento de consciência, temos a liberdade para escolher “sair de dentro das nossas cabeças” e direcionarmos o foco da atenção para o momento presente, para o nosso corpo, para o que está à nossa volta, - aquele momento em que estamos - e para vivermos as nossas vidas, momento a momento... aqui e agora!